quinta-feira, 28 de março de 2013

Abuso de interpretação

"É um verdadeiro acinte aos direitos humanos o modo como a fala nordestina é retratada nas novelas de televisão, principalmente da Rede Globo. Todo personagem de origem nordestina é, sem exceção, um tipo grotesco, rústico, atrasado, criado para provocar o riso, o escárnio e o deboche dos demais personagens e do espectador. No plano linguístico, atores não-nordestinos expressam-se num arremedo de língua que não é falada em lugar nenhum do Brasil, muito menos no Nordeste. Costumo dizer que aquela deve ser a língua do Nordeste de Marte! Mas nós sabemos muito bem que essa atitude representa uma forma de marginalização e exclusão. Para mostrar que a fala nordestina nada tem de "engraçada" ou "ridícula",vamos fazer uma pequena comparação. Na pronúncia normal do Sudeste, a consoante que escrevemos T é pronunciada [tš] ( como em "tcheco") toda vez que é seguida de um [i]. Esse fenômeno fonético se chama "palatização". Por causa dele, nós, sudestinos, pronunciamos [tšitšia] a palavra escrita TITIA. E todo mundo acha isso perfeitamente normal, ninguém tem vontade de rir quando um carioca, mineiro ou capixaba fala assim. Quando, porém, um falante do Sudeste ouve um falante da zona rual nordestina pronunciar a palavra escrita OITO como [oytšu], ele acha isso "muito engraçado", "ridículo" ou "errado". Ora, do ponto de vista meramente linguístico, o fenômeno é o mesmo - palatalização (...) Então, se o fenômeno é o mesmo, por que na boca de um ele é "normal" e na boca de outro ele é "engraçado", "feio" ou "errado"? Porque o que está em jogo aqui não é a língua, mas a pessoa que fala essa língua e a região geográfica onde essa pessoa vive. Se o Nordeste é "atrasado", "pobre", "subdesenvolvido" ou (na melhor das hipóteses) "pitoresco", então "naturalmente", as pessoas que lá nasceram e a língua que elas falam também devem ser consideradas assim... 

Ora, faça-me o favor, Rede Globo!" 
Marcos Bagno em: PRECONCEITO LINGUÍSTICO - o que é, como se faz. 
Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1999.

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